Loteamento na cultura

por Luciana Medeiros 13/03/2023

Exoneração de João Guilherme Ripper da Sala Cecília Meireles demonstra que, para esses governos, cultura é uma mercadoria política que pode ser colocada no balcão com rapidez

O lugar já foi mercearia, hotel e cinema. Fica do lado dos Arcos da Lapa, no Rio, ponto turístico da cidade colonial que foi capital, também, do Império e da República. Desde 1965, o prédio com duas torrezinhas e fachada cega virou referência de boa música clássica, principalmente de câmara, pela sua programação e acústica extraordinária. Foi dirigida, como deve ser sempre, por músicos e compositores, com pouquíssimas exceções, talvez só uma – José Mauro Gonçalves, que também foi diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira. Todos os outros foram – são – músicos de primeiríssima linha e experientes nas questões empresariais e administrativas – basta citar Edino Krieger, Myrian Dauelsberg, Jacques Klein, Lilian Barretto, Turíbio Santos, entre outros.

Pois nessa segunda feira, 13 de março, sai no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro a exoneração de João Guilherme Ripper, diretor em dois longos mandatos e um dos mais competentes gestores da rarefeita turma de quem entende de gestão e de música. Ripper comandou uma reforma elegante e eficiente do espaço – que tinha banheiros alagados quando chovia e muitos problemas estruturais –, tornou o lugar artisticamente viável ao captar patrocínios através da Associação de Amigos e fez funcionar a Sala como a joia que é. 

Ripper fez também uma reforma na programação, que ganhou linhas temáticas, festivais e ênfase nos grupos de câmara tocando do barroco ao contemporâneo. Criou o Programa Gestores – um verdadeiro ovo de Colombo, ao treinar jovens músicos para a função que exerce, mesclando competências práticas com inspiração musical, usado a própria sala (na verdade, o Espaço anexo, batizado Guiomar Novaes) como projeto piloto de cada aluno, supervisionado pelos profissionais. E não deixou a bola cair na pandemia: pouco tempo depois do susto inicial, os concertos voltaram a acontecer, transmitidos pelas redes. Foi premiado com o Prêmio CONCERTO por esses dois projetos: a transmissão, de excelente qualidade visual e sonora, e o projeto de formação. 

No seu lugar entra Aldo Mussi, que já tinha acumulado a direção da Sala por poucos meses no período em que era também presidente do Municipal do Rio – outro lugar, esse colossal, que há tempos vem precisando de muito mais amor à arte e ao patrimônio histórico do que tem recebido. Aos 58 anos, Mussi – de Macaé, cidade costeira do Estado, com forte exploração de petróleo – se dedicou ao rádio, ao marketing e ao turismo; tem uma ligação forte com o cinema. Sua biografia diz que é “apaixonado por música erudita e ópera”, sem maiores detalhes. Verdade que sua gestão à frente do Municipal foi, em mais da metade do tempo, abafada pela pandemia – entrou em janeiro de 2019 e saiu em janeiro de 2021. 

Certamente não foi por insatisfação com o trabalho de Ripper que houve a troca. Há um loteamento constante e irritante nos espaços culturais e nas funções da área, em todas as instâncias. A cultura, para esses governos, é um bem “menor”, “dispensável”, um setor que pode ser capitaneado por qualquer pessoa, uma mercadoria política que pode ser colocada no balcão com rapidez.

O Rio de Janeiro perde mais uma vez um consagrado gestor, com ideias próprias e ferramentas certas, que vinha dando à Sala o papel de resistência na qualidade da música carioca – e sem dar despesa ao governo do Estado, o dono da Sala. Pelo menos Ripper vai ficar na Funarj, a fundação guarda-chuva que reúne diversos equipamentos culturais, disposto a ajudar na programação que vinha apresentando. E vai levar o programa Gestores a outros lugares do Brasil. 

E nos resta torcer para que a Sala Cecília Meireles possa continuar a ser um bastião da música de concerto – como já estava sendo, o único, numa metrópole que deveria ter muito mais palcos para o clássico. 

Fachada da Sala Cecília Meireles (Revista CONCERTO)
Fachada da Sala Cecília Meireles (Revista CONCERTO)

 

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O artigo expressa bem o meu sentimento sobre a exoneração do compositor Ripper da Sala Cecilia Meirelles. Uma pena perder um gestor de grande valor e efetividade como ele.

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