‘Quão tóxico é o repertório de ópera?’

por Nelson Rubens Kunze 02/05/2023

Debate promovido pela Ópera de Zurique aborda racismo, preconceito e apropriação cultural no repertório lírico histórico

O wokeness (do inglês “awaken”, desperto), que é a postura de estar atento a injustiças sociais, preconceitos e discriminações, é um fenômeno mundial em todas as áreas e assim tem sido tema frequente também nos teatros de ópera e nas salas de concerto. A preocupação se reflete em ações de democratização de acesso, relacionamento mais estreito com a comunidade, diversidade racial e ampliação de repertórios. No Brasil, há muitos anos, os vários projetos de integração social, grande parte inspirados pelo El Sistema venezuelano, tem sido uma importante contribuição para dar à atividade clássica uma nova e bem-vinda legitimidade social.

Na ópera, o tema chegou ao grande repertório histórico. Títulos de várias épocas e dos mais variados compositores – Mozart, Verdi, Puccini – são questionados em relação a expressões racistas, à veiculação da figura da mulher de forma preconceituosa e degradante e ao tratamento exótico e enviesado dado a outros países a partir de uma visão eurocêntrica.

Agora, o site da Ópera de Zurique publica uma interessante série de entrevistas acerca do repertório lírico e seu tratamento nos dias de hoje (em alemão, clique aqui para ler).

Sob o título geral “Quão tóxico é o repertório de ópera?”, o dramaturgo da casa Claus Spahn perguntou a diversos especialistas – a estudiosa de literatura alemã Barbara Vinken, a diretora cênica alemã Tatjana Gürbaca (filha de um turco com uma italiana), a mezzo soprano Katia Ledoux (francesa de origem guadalupe), o diretor cênico e intendente da Ópera de Zurique Andreas Homoki, a coordenadora de diversidade da Ópera de Paris Myriam Mazouzi e o compositor teuto-indiano Sandeep Bhagwati – sobre temas como a tradição masculina e machista da ópera, a difusão de uma imagem estereotipada da mulher, o racismo, a falta de diversidade e a apropriação cultural. O debate publicado pela Ópera de Zurique é especialmente interessante, pois é transversal, revela a complexidade do assunto e ilumina a questão a partir do lado de quem trabalha com a ópera. 

Apesar da riqueza e da multiplicidade de opiniões contidas nas entrevistas, ouso destacar alguns trechos para dar uma ideia da discussão.

Em relação ao enfrentamento do racismo na ópera, por exemplo, a mezzo soprano Katia Ledoux afirma que o assassinato de George Floyd foi um marco. Ela cita como exemplo a criação da Black Opera Alliance, nos Estados Unidos, em 2020. “Inicialmente, ela pretendia ser mais uma entidade para networking e apoio mútuo. No entanto, isso rapidamente se transformou em uma forte força política, que pressiona as casas de ópera: vamos finalmente mudar a situação!” A principal reivindicação é a de uma representação mais justa nos teatros, em que a mesma proporção de negros que há na região seja observada também no elenco de artistas. 

A principal reivindicação é a de uma representação mais justa nos teatros, em que a mesma proporção de negros que há na região seja observada também no elenco de artistas

Já Myriam Mazouzi, coordenadora de diversidade da Ópera de Paris, afirma que os cantores negros ainda têm dificuldade de acesso a muitos papéis do repertório. Ela defende que “aqueles papéis que são claramente ‘dedicados’ a eles, como Aida de Verdi, devem sim ser entregues exclusivamente a eles”. Mazouzi espera que o acesso ao mercado de trabalho para cantores negros e asiáticos seja simplificado. “E, nesse caso, eu acho que seria correto se os negros cantassem também as partes dos brancos e vice-versa.”

Outro assunto em discussão é o da apropriação cultural e dos tratamentos exóticos dados a certas óperas do repertório histórico a partir de uma visão eurocêntrica. Em relação a isso, o compositor Sandeep Bhagwati responde: “Muitas óperas abordaram temas relevantes de seu tempo, como O rapto do serralho, de Mozart. A ameaça representada pelo Império Otomano, mas também os sequestros sistemáticos de europeus pelos corsários apoiados por este império, foram questões importantes no século XVIII. Como resultado disso, a visão da cultura oriental era, em partes iguais, de medo e de atração”. E Bhagwati segue: “No século XIX, as pessoas sentiram que no Extremo Oriente, como na China, havia um fascinante império de importância política global que era conhecido apenas por alguns europeus, e por isso ele foi objeto da criação artística. Nas óperas, a motivação para recorrer a culturas estrangeiras não era a confiança arrogante na própria superioridade, mas algo como uma curiosidade ansiosa.”

“Nas óperas, a motivação para recorrer a culturas estrangeiras não era a confiança arrogante na própria superioridade, mas algo como uma curiosidade ansiosa”

Para defender a encenação de títulos históricos mesmo que polêmicos, a diretora Tatjana Gürbaca reflete: “Estou fundamentalmente convencida de que a interpretação é tudo na ópera. As obras só existem se as realizamos. [...] Assim, é claro que há muita pressão sobre nós, diretores. Não só porque temos de lidar com cada peça de tal forma que ela seja relevante para nós hoje, mas sobretudo porque nosso repertório é muito pequeno e, geralmente, já conhecemos outras dez interpretações daquele título. Então, todas as vezes você tem de se perguntar criticamente: esse trabalho vale a pena? E se sim, por que quero levá-lo ao palco? [...] Se você não sente um forte impulso interior para recontar uma ópera, é melhor não fazê-lo. Eu, hoje, sou muito boa em dizer não”. 

Há uma ópera, contudo, para qual Gürbaca até hoje não encontrou uma solução: Madama Butterfly, de Puccini. “Na minha opinião, o conceito de tóxico realmente se aplica a Madama Butterfly”, diz. “Já recebi duas propostas para encenar a ópera, mas as duas vezes recusei, porque não encontrei uma resposta para a questão de como lidar com esse material. […] Não descobri como fazer algo empolgante com isso. A história é mesmo muito ruim”. 

Myriam Mazouzi, da ópera de Paris, também é da opinião de que não se deve abolir de antemão qualquer título: “O fato de os homens brancos europeus do século XIX se considerarem superiores e terem uma visão muito específica de outras culturas se reflete em muitas óperas e balés desse período. Acho que devemos olhar mais criticamente para essas obras, mas não retirá-las da programação”.

“Acho que devemos olhar mais criticamente para essas obras, mas não retirá-las da programação”

O diretor Andreas Homoki acredita que há uma filtragem ao longo dos séculos que faz chegar a nós apenas obras que de alguma maneira nos dizem respeito: “Não conhecemos e nem tocamos a maior parte das óperas que foram escritas nos séculos XVIII e XIX, porque elas estão demasiadamente ligadas ao tempo em que foram escritas, e já não comunicam nada à sociedade do nosso tempo. [...] Arrisco a tese de que as óperas, que ainda hoje nos têm algo a dizer, acabam por ter sempre uma preocupação emancipatória inerente. [...] Daí ela ter uma potência atemporal que ainda sentimos até hoje”. 

Homoki reconhece que a maioria das óperas do século XIX tem como pano de fundo uma sociedade dominada pelos homens, “porque era assim naquela época”. Ele, contudo, acredita que os autores realmente bons, aqueles que permaneceram, “apontam com suas obras para além das hierarquias temporais”. “É por isso que nas óperas as mulheres são sempre portadoras de utopias. Elas fracassam, mas o apelo de que as coisas devem mudar persiste após suas mortes. A reivindicação de humanidade está intimamente ligada à forma de arte emocional da ópera. E a arte realmente excelente está livre de ressentimentos.”

“A reivindicação de humanidade está intimamente ligada à forma de arte emocional da ópera. E a arte realmente excelente está livre de ressentimentos”

Em uma defesa da liberdade artística, Homoki também chama a atenção para outra questão séria, que é a de como muitos temas complexos são abordados de maneira simplória, agressiva e autoritária nas redes sociais. “É desconfortável. O discurso [do wokeness] é fortemente influenciado pelas redes sociais, que não têm poder legitimado democraticamente, mas criam uma pressão de opinião que não se baseia em argumentos, mas que julga moral e ideologicamente. As tempestades de merda [shitstorm] anônimas são frequentemente apresentadas pela mídia respeitável como realidade de opinião. As forças sociais liberais acham difícil reagir a isso por medo de dizer algo que acham errado. E, de repente, a questão populista é se devemos ou não abolir Winnetou [personagem indígena da literatura juvenil escrita por Karl May, muito lido na Alemanha]. Minha preocupação é que nossa ordem social liberal e democrática seja enfraquecida e desconstruída por tais lutas partidárias, tornando-a vulnerável a interesses totalitários.”

Na entrevista da Ópera de Zurique, também a intelectual feminista Barbara Vinken faz uma defesa dos títulos polêmicos: “Em termos de igualdade de gênero, o século XIX foi, talvez, o pior de todos os séculos. Mas é precisamente a ópera que fala da intolerabilidade das concepções burguesas do matrimônio e da pequena família patriarcal; ela não propaga os valores do patriarcado, mas os denuncia. A masculinidade patriarcal sofre um naufrágio catastrófico no palco de ópera.”

“A ópera não propaga os valores do patriarcado, mas os denuncia. A masculinidade patriarcal sofre um naufrágio catastrófico no palco de ópera”

Vinken explica que a literatura, o teatro e a ópera falam dos perdedores, enquanto a historiografia fala dos vencedores. “Pense na Eneida de Virgílio: esta é uma história de vencedores – o Império Romano é fundado. Mas a grandeza da Eneida não está no triunfo do novo Império Romano. Ela está na tragédia da queda de Tróia, na representação da morte de Dido, são elas que deram vazão às emoções de leitores por mais de dois mil anos. Não estamos satisfeitos com os vencedores. Sofremos com Dido abandonada, trágica e que comete suicídio. A grandeza das óperas está em tomar a perspectiva do subjugado.”

A diretora Tatjana Gürbaca afirma ainda que a atenção para com a injustiça e os preconceitos deveria permear também outros setores da sociedade: “Os teatros e as casas de ópera conduzem os debates sobre modelos femininos contemporâneos, domínio masculino, diversidade, abertura de gênero ou apropriação cultural com grande paixão, porque faz parte de sua autoimagem pensar e se questionar sobre as coisas de forma engajada. A gente é o foco no momento. Mas é claro que essas questões também devem ser discutidas e trabalhadas em todas as outras esferas da sociedade. O pensamento ultrapassado aninha-se não só no repertório das casas de ópera, mas também em bancos, universidades, emissoras de televisão, hospitais e supermercados. Está em todos os lugares.”

Por curiosidade, dei um google para saber dos números de feminicídio e descobri que “o Brasil teve 3,9 mil homicídios dolosos (intencionais) de mulheres em 2022 (aumento de 2,6% em relação ao ano anterior)”. Dá mais de 10 assassinatos por dia e aposto que a maior parte dos assassinos diz que matou “por amor”. 

Pelo menos o Don Giovanni de Mozart e Da Ponte acabou tragado pelas chamas do inferno...

Cena de ‘Don Giovanni’, de Mozart, em produção da Ópera de Zurique de 2001 (reprodução YouTube)
Cena de ‘Don Giovanni’, de Mozart, em produção da Ópera de Zurique de 2001 (reprodução YouTube)

 

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Discussão necessária. Na recente encenação de A flauta mágica no Palácio das Artes, foi evidente o constrangimento do público com muitas das falas das personagens. Tentaram amenizar com a atuação, mas não deixa de ser horrorizante.

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